O Santeiro

24 09 2011

Andava pensativa pelo cemitério naquela manhã de Domingo, havia tempos que estava em dívida com sua mãe. Sua sepultura estava abandonada e as flores há muito deviam estar murchas. Preferiu a solidão para a tarefa, não se importando com o intenso sol matinal a lhe convidar para aproveitar o burburinho da cidade.

Chegando à sepultura teve uma grata surpresa, tudo estava em perfeita ordem. Diversos tipos de flores rodeavam a lápide e ao lado uma escultura de madeira de Santo Antônio repousava, como que abençoando o descanso de sua mãe. Olhou ao redor ainda na vaga esperança de encontrar alguém que soubesse lhe dizer quem havia feito aquele mimo póstumo à sua mãe.

Ajoelhou-se diante da lápide, deixou suas flores próximas à figura do santo e rezou demoradamente. Para ela era como um ritual, sempre que tinha um problema de difícil resolução ou que se encontrava indecisa quanto aos rumos que deveria tomar, visitava o cemitério e rezava por sua mãe. Quando a deixava se sentia mais leve e então o pensamento começava a clarear, sempre lhe apontando a melhor saída. Jamais conhecera seu pai, mas sempre teve o apoio incondicional da mãe, uma bela nordestina que veio desbravar a metrópole em busca de uma vida melhor, vida esta que o pequeno lugarejo onde nasceu não lhe proporcionava.

Terminando suas preces foi se retirando lentamente, mas parou quando avistou um dos coveiros do cemitério.

– Moço, por acaso viu se alguém veio visitar aquele túmulo recentemente? – Disse apontando para a florida lápide.

– Oi dona! Veio sim, foi um senhor que inda ontem deixou esse mundaréu de flor no túmulo.

– E quanto ao santo? Sabe se foi ele também?

– Foi sim. Vai ver sabia que a falecida era devota de Santo Antônio.

Tudo aquilo soava muito estranho, ela nunca soube que a mãe era devota de santo algum, muito pelo contrário! Sempre se mostrou avessa à religião e se esquivava de comparecer à igreja, principalmente em casamentos, o que era até embaraçoso de explicar aos familiares e amigos.

Ainda caminhava pensativa quando o coveiro, ao ver sua estranheza, acrescentou na tentativa de ajudar:

– Ele deve ter trazido o santo ontem, das outras vezes ele só trouxe flores…

– Das outras vezes?

– É… – Disse o coveiro um tanto arrependido, tentou ajudar e agora estava à mercê da curiosidade crescente da jovem, mas ainda acrescentou:

– Vejo ele por aqui todo dia treze.

Apesar de ainda atordoada com o mistério que se formava, agradeceu ao coveiro e tomou o rumo de casa. Tinha os seus próprios problemas, mas tão logo os resolvesse ia procurar pela caixa de documentos da mãe, talvez ali pudesse encontrar respostas para o enigma.

Em alguma destas janelinhas iluminadas que existem aos montes pela cidade e que abrigam a solidão de tantas pessoas, um senhor estava debruçado na sacada observando a cidade que nunca para. Quem o visse naquele instante não imaginaria o que ia em seus pensamentos nos últimos meses. De repente foi inundado por recordações que ele supunha já resolvidas em seu coração. Bastou ler um aviso de falecimento em um jornal antigo para que tudo viesse à tona. O nome era bastante comum: Maria Inês. Mas o sobrenome não deixou dúvidas sobre a identidade daquela que modificou tão profundamente a sua vida: Bianco de Castro. Checou a data de nascimento e então suas dúvidas se dissiparam, era mesmo a sua Inês. Sua? Não, ela não era sua… Na verdade ela nunca havia sido verdadeiramente sua.

Relutou o máximo que pôde para não se lembrar daquela noite, não queria perder o controle novamente, mas foi em vão. As cenas do seu passado em um lugarejo do nordeste desfilaram por seus pensamentos sem pedir licença e pouco se importando com sua reação pesarosa.

Naquele tempo eram tão jovens, estavam apaixonados e em breve se casariam. Sabiam que seria difícil viver naquele lugarejo tão precário, mas planejavam se mudar para uma cidade maior, onde as oportunidades eram melhores. Ela costurava muito bem e ele havia aprendido com o pai a arte de esculpir em madeira. Os dois tinham o seu ofício e fariam uso dele para garantir um futuro melhor.

João estava especialmente alegre naqueles dias, havia terminado uma importante encomenda para a única igreja de sua cidade, uma imagem de Santo Antônio feita em madeira de imburana. Até então aquela era a sua obra-prima.

O dia do casamento havia chegado rapidamente e, como manda a tradição, ao cair da noite João foi aguardar por sua noiva no altar da pequenina igreja. Olhou orgulhoso para todos os parentes e amigos que chegavam para testemunhar sua união com Inês.

Porém os minutos passavam depressa e nada da noiva aparecer. Discretos cochichos começavam a ecoar pela igreja e João percebeu que algo estava errado, contudo não deixou o altar e aguardou nervosamente por sua Inês. Duas horas e meia se passaram até que a mãe da noiva chamou João na sacristia e aos prantos lhe mostrou um bilhete:

Peço desculpas pela vergonha que lhes faço passar, mas não posso me casar. Fiquem com Deus. Inês.

João não podia acreditar nas míseras linhas que acabava de ler, por que Inês o havia abandonado? O que aconteceu com o amor que dizia sentir por ele?

Os familiares saíram atordoados da igreja, os convidados pediam explicações, mas a única informação que obtinham era de que não haveria mais casamento, pois a noiva partiu e não disse para onde. O pai de Inês não se conformou com a atitude da filha e reuniu várias pessoas para procurarem por ela nos limites da cidade. Não deveria estar longe, pois o ônibus que parte para a capital havia passado de manhã e Inês ainda estava em casa nesta hora, ele sabia. Ela estava estranha, pensativa e com ar tristonho, tanto ele quanto sua esposa haviam reparado, mas atribuíram ao nervosismo natural das noivas.

Somente dias depois foi descoberto que Inês partiu para São Paulo acompanhada de Tenório Bianco de Castro, filho de um rico fazendeiro da região, que também não se mostrava nada contente com a união do seu herdeiro com uma costureira.

João enlouqueceu perante esta revelação, em diversos momentos percebeu o interesse de Tenório em sua noiva, mas confiava em Inês, jamais imaginou que ela pudesse sucumbir às suas falsas promessas.

Em um momento de desespero, invadiu a igreja olhando com ferocidade para a imagem de Santo Antônio, que ironicamente emanava calma e paz, tudo o que ele não possuía dentro de si naquele momento.

Com muito custo fez a pesada escultura tombar ao chão, produzindo um enorme barulho. O padre e o sacristão vieram imediatamente ver o que estava acontecendo e testemunharam um João transtornado a golpear com um machado a escultura que havia feito com tanta dedicação. Ainda tentaram conte-lo, mas ele não ouvia, estava consternado, precisando deixar esvair toda a decepção e vergonha que sentia por amar uma mulher que não merecia o seu amor.

Esta passagem sombria na vida de João o transformou para sempre, nunca mais foi o mesmo, nunca mais sorriu, nunca se esqueceu. Nunca. Na cidade ficou conhecido como João de Santo Antônio, alusão ao trágico acontecimento na igreja. Os habitantes da cidade passaram a temê-lo e ele naturalmente foi se esquivando da companhia das outras pessoas, preferindo se recolher em sua dor.

A cada acesso de fúria que tinha quando era atordoado pelas lembranças, saia em busca de madeiras de talhe fácil, amolava suas ferramentas e trabalhava arduamente em esculturas que deslumbravam os olhos dos compradores, tanto pela perfeição quanto pelos minuciosos detalhes. Foi a maneira que encontrou de conter a parte ferida do seu coração, compensando a solidão que sentia e que não superava, transformando dor em arte.

Os anos passaram e ele adquiriu reputação entre os escultores, sendo frequentemente convidado a participar de exposições. As encomendas em série começaram a aparecer e quando achou que deveria, mudou-se para São Paulo adotando o codinome com o qual ficou conhecido em sua terra. Contudo se recusava terminantemente a esculpir o santo, alegava motivos pessoais.

Numa tarde em que estava trabalhando em mais uma encomenda, avistou um jornal velho ao lado da escultura que acabava de terminar. Ao acaso o pegou para retirar o excesso de betume na base da estatueta, foi quando avistou o nome que tanto o perturbava. Parou a operação e leu o aviso de falecimento, que ocorrera no dia 13 de Junho.

Não foi difícil para ele descobrir o local de sepultamento e desde então, a cada dia treze passou a visitar o túmulo, para se fortalecer e reafirmar em quem havia se transformado graças à traição daquela mulher. Se não fosse por ela, não seria capaz de se superar a cada escultura, não daria tanta importância aos detalhes, não se esforçaria para ser o melhor e fazer o seu nome ecoar pela cidade, sendo referência para a nova geração de escultores. Como forma de agradecimento e superação pessoal, quebrou seu juramento de dor e talhou em mogno o mais perfeito exemplar de Santo Antônio de que foi capaz.

Quase um mês havia se passado desde que Joana foi ao cemitério. Desde então não conseguia entender por que um estranho se empenharia tanto em fazer a manutenção do túmulo de sua mãe. Foi quando se lembrou da caixinha de madeira onde a mãe guardava documentos e cartas que recebia de alguns parentes distantes. Abriu a caixinha com todo cuidado, sabia que a mãe não gostava que mexesse em suas coisas, as duas sempre respeitaram os segredos uma da outra, mas ela havia partido e Joana queria compreender um pouco mais de sua história. O que encontrou foi uma série de cartas escritas pela própria Inês, mas ao que tudo indicava, jamais haviam sido enviadas ao destinatário.

Nas cartas, Inês pedia perdão a um tal de João de Santo Antônio, explicou que não pôde se casar porque havia sido violentada por Tenório e este prometera acabar com a vida de João se ela insistisse no casamento. Para proteger o amado noivo, partiu com Tenório para São Paulo.

Mas assim que o dinheiro acabou Tenório foi atrás de seu pai, que por não aceitar sua união com Inês, se recusou a lhe dar abrigo. Sem dinheiro, mas acostumado com a boa vida, Tenório abandonou Inês e a deixou sozinha e grávida.

Anos mais tarde, quando descobriu que estava com um tumor maligno, a procurou para conhecer a filha e legalizar a união dos dois, assim a pequena Joana poderia ter direito a herança de sua família. Por isso ela aceitou se chamar Maria Inês Bianco de Castro, mas repudiava Tenório, fazendo o esforço pelo futuro de Joana.

Agora Joana entendia uma série de coisas, chorou copiosamente comovida com o sofrimento de sua mãe. O senhor que visita o seu túmulo regularmente não poderia ser outro além de João de Santo Antônio.

Aguardou pacientemente o próximo dia treze e então foi novamente ao cemitério.

Ficou à espera próxima ao túmulo de sua mãe. Horas se passaram, até que finalmente viu um senhor se aproximando. Joana teve vontade de chorar quando o viu rezando por sua mãe. Ele não trazia sinal algum de raiva ou descontentamento, apenas de pesar pela morte de Inês. Quando percebeu que ele havia terminado e se preparava para sair, se aproximou e lhe estendeu a caixa de madeira da mãe. Ele a olhou confuso com aquela abordagem e ela emocionada lhe explicou.

– Ela não se achou digna de lhe enviar essas cartas, mas se as escreveu é porque sentiu no fundo do coração que um dia o senhor deveria conhecer a verdade.

Com as mãos trêmulas, João de Santo Antônio pegou a caixa das mãos de Joana e a reconheceu imediatamente, foi o primeiro presente que deu a Inês. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele se afastou sem nada dizer, caminhando lentamente por entre as lápides do cemitério.

Após a leitura das cartas, sentiu uma brisa suave o envolver e então sussurrou:

– Está perdoada minha querida Inês…

E como prova do seu perdão, Santo Antônio regressou ao altar da igreja no lugarejo onde nasceu, novamente enchendo de esperança os corações dos que compreendem que tanto o amor quanto a dor podem transformar as pessoas, para melhor.

Conto inspirado na letra da musica “Milagreiro” na voz de Cássia Eller e Djavan.